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Cisne Negro

Nina foi criada ao longo de seus 28 anos de uma forma infantilizada, engessada e presa a valores impostos pela sua mãe, Erica, que vê nela uma maneira de conseguir realizar o seu sonho de ser uma bailarina de sucesso, sonho esse que foi interrompido pela gravidez. Através de aspectos subjetivos e materiais somos convidados a nos inserirmos no aprisionamento da personagem e conseguimos, ao longo da narrativa, compreender as consequências de um longo processo de infantilização, entraves no processo de desenvolvimento cognitivo, pressão pela perfeição e uma série de abusos psicológicos e físicos provenientes tanto de Erica quanto do diretor do balé, Thomas. 

Quando nos referimos a aspectos materiais podemos destacar as vestimentas de Nina, que são sempre claras (brancas ou rosas) passando um ar de fragilidade, inocência e pureza à personagem (acabam se tornando um reflexo da própria personalidade que inicialmente nos é apresentada). O quarto da protagonista, que possui uma decoração infantilizada e excessivamente inserida em um mundo de “fantasia”, denota o quanto, apesar de sua idade, Nina continua sendo vista e tratada (até por si mesma) como uma garotinha indefesa e sem autonomia. 

 Em relação aos aspectos subjetivos, temos em Nina uma pessoa tomada pela fragilidade, pureza e pelo SuperEgo, presa a valores e regras impostas pela sua mãe. Esses aspectos são facilmente vistos pela voz sôfrega de Nina, sua falta de força para se colocar quando algo a desagrada e pela sua constante aceitação de tudo que é exigido a ela.

Ao decorrer da trama temos uma protagonista fragilizada psicologicamente que é exposta a um nível acentuado de estresse, incitada e abusada mentalmente e fisicamente, pelo seu diretor, a mostrar um lado mais sensual de si para conseguir aquilo que tanto almejava, o papel de Rainha dos Cisnes. Esses fatores são desencadeadores de algo que estava sendo reprimido dentro de Nina, algo que ao mesmo tempo que a ela é estranho, é também familiar. Esse aspecto de dualidade é acentuado por várias cenas contendo espelhos, onde podemos notar um reflexo de Nina com uma outra personalidade, um outro eu, que aparenta querer se libertar. Eis que surge a dúvida quanto a quem realmente é aquela que se faz presente nesses reflexos, seria uma segunda personalidade de Nina? Ou seriam todos as suas vontades que estavam presas no inconsciente voltando-se a luz do consciente? Ou seria o reflexo de uma psicose desenvolvida por Nina ao longo da trama? 

Na iminência da perda do papel de protagonista para Lily, uma bailarina mais despojada, envolvente e sensual, Nina passa por um processo de amadurecimento tardio. Portanto, temos que Lily representa o alterego da protagonista que ao decorrer da trama vai se tornando cada vez mais presente até o momento em que ID (desejo) reprimido se liberta e toma o controle do corpo de Nina (destaque para a cena em que Lily e Nina apresentam-se unificadas no reflexo do espelho, na cena de sexo em que Nina vê a si própria em Lily e no momento em que Nina incorpora o cisne negro e mata sua personalidade pura).

Por fim, há uma relação muito interessante entre a perfeição e a morte. Nina sempre buscou ser perfeita e isso levou ela a ultrapassar todos os limites físicos e psicológicos até finalmente atingir o tão almejado objetivo, sendo que para isso precisou morrer (embora esse aspecto não seja confirmado na trama), tanto artisticamente (enredo da peça Lago dos Cisnes) quanto na realidade. Temos aqui que a morte foi um processo de libertação da personagem e que é a partir dela que Nina finalmente atingiu a perfeição.

Relação mãe e filha

Nossa cultura relativiza a questão abuso infantil, principalmente quando esse abuso é realizado pelo(a) cuidador(ra). Consideramos que, quando situações de abuso ocorrem, elas nada mais são do que uma “mãe/pai sendo super-protetora/super-protetor”.  Isso resulta em uma sociedade que não consegue reconhecer a relação íntima entre traumas infantis e transtornos mentais na vida adulta. 

Erica deposita em sua filha grandes expectativas quanto a uma carreira de destaque no balé, expondo Nina desde a infância a privações e a um cuidado extremamente exagerado. Como resultado dessa relação de posse, controle e infantilização, temos uma mulher de 28 anos que não tem privacidade no seu próprio quarto (a porta do quarto não tem chave), é infantilizada (a mãe de Nina é quem a coloca para dormir, a veste, penteia seus cabelos, corta suas unhas etc), não tem relacionamentos, sejam eles de amizade ou interesses amorosos e sequer consegue ter algum desabrochar sexual. Ao mesmo tempo, é curioso que Erica muitas vezes se coloca como um impasse para a carreira da protagonista, é como se ela se sentisse frustrada pelo sucesso da filha, mesmo que esse tenha sido, a priori, o seu desejo desde a gravidez. 

É interessante destacar ainda que temos um pequeno indicio de abuso sexual da mãe de Nina em uma cena em que ela pergunta se Nina estaria pronta para ela, e a cena é cortada.  

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Relação entre Thomas e Nina

A relação entre Thomas e Nina é uma representação clara de abusos de profissionais/professores para com seus funcionários/alunos, presentes na realidade social em que vivemos. Esse abuso, muitas vezes é camuflado por uma falsa ideia de ensinamento não ortodoxo, de modo a relativizar certas atitudes realizadas pelos ditos “gênios” de determinada profissão. Portanto, temos ao decorrer da narrativa, uma mulher que já era vítima de abusos psicológicos desde sua infância (através de sua mãe) sendo novamente exposta a situações mentais extremas e de violação física. Nesse aspecto, temos que considerar que essa relação foi normalizada por Nina desde o ínicio da sua vida e talvez isso a levou a não diferenciar o que seria uma atitude aceitável de um abuso. Podemos ainda adicionar que em um ambiente como o de balé, que muitas vezes representa a vida de quem exerce a profissão, certas atitudes acabam sendo “aceitas” pois se não forem o indivíduo acaba perdendo tudo aquilo que conquistou durante a carreira e tudo aquilo que poderia vir a conquistar.

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Psicose

Erica, a partir da tentativa de elevação do seu eu narcísico, repassa a Nina todos os seus desejos que não foram conquistados ao longo da vida, tornando a protagonista uma extensão ou apêndice de sua própria mãe. A permanência do narcisismo primário (afeto paterno/materno com os filhos com o objetivo de reviver seu próprio narcisismo. É uma tentativa de recuperar aquilo que ficou perdido na vida dos pais), mediante ao controle excessivo de Nina, faz com que ela permaneça agindo (inconscientemente) de modo que Erica continue a ama-la, levando a um processo quase simbiótico entre filha e mãe, tanto é que não sabemos realmente se Nina queria ser uma bailarina ou apenas fez aquilo que era desejo de sua Mãe. Temos então a presença, em Nina, de uma “psicose encapsulada”, ou seja, devido a sua rotina, a busca pela perfeição, o controle da mãe e disciplina sua psicose manteve-se latente até que após uma série de situações de estresse tivemos o eclosão de sua psicose. 

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Quando Nina consegue o tão almejado papel principal na peça “Lago dos Cisne”, inicia-se o seu processo de ruptura. Um evidente fenômeno psicotico que temos sendo desenvolvido desde que Nina é escolhida como Rainha dos Cisnes até o momento final é não saber mais simbolizar, isso ocorre quando o “Cisne Negro” invade e domina o corpo da protagonista, que não consegue diferenciar mais o que é o cisne e o que é ela.

O decorrer da trama é marcado por alucinações, autoflagelação e delírios decorrentes da condição de perplexidade e estranheza da protagonista. Estranheza essa por um amadurecimento tardio, em que Nina após anos tendo sua sexualidade, seus desejos e sua autonomia reprimida pela mãe (e até por si mesma) é levada a confrontar todos esses pontos, chegando ao limite em que seu ID emerge e toma o holofote da consciência .  

Aspectos Técnicos

O figurino da personagem acompanha sua transformação de cisne branco em cisne negro. Ao longo da trama Nina que só usa roupas brancas e rosa, além de ser sempre gentil, frágil, inocente, sem atividade sexual (mais pela imposição da mãe do que realmente seu desejo), se importar com o que os outros pensam e ter a voz sempre suave, começa a usar roupas cinzas e depois, ao final, usa a roupas pretas, o que demonstra sua passagem pela rebeldia, sexualidade, enfrentamentos familiares, com xingamentos e elevações de voz com a mãe que podem representar a perda de sua identidade ou o nascimento de sua verdadeira identidade.

É  curioso notar que a peça é uma metáfora da própria vida de Nina que se encotrará dividida entre o cisne branco e o cisne negro, o “bem” e o “mal”, o puro e o sensual. Então podemos ver na própria trama um “conto moderno” do lago dos cisne ou apenas a representação do enredo da peça na nossa vida cotidiana.

Aspectos coletivos/sociais

A busca pela perfeição imposta socialmente à mulher é insustentável. Durante o filme, percebe-se que nenhuma mulher alcança o aceitável : Nina é fria e profissional demais, Lily é sexy e despojada demais, Beth é velha demais. As bailarinas representadas não conseguem atingir o ponto de equilíbrio de uma mulher perfeita, haja vista que essa imagem, na verdade, é uma construção social criada para oprimir as mulheres. O filme demonstra tão bem essa ideologia patriarcal por meio da cena final metafórica, em que a Nina se mata quando sente que se tornou perfeita, uma vez que não é possível se enquadrar nos parâmetros de perfeição impostos pela sociedade e continuar viva.

 

A escolha de um espetáculo que fosse um sucesso para a companhia de Thomas permeia questões que vão além do conceito puramente artístico. Para salvar sua companhia, o diretor da peça precisava apresentar um trabalho diferenciado e que ao mesmo tempo atraísse um grande público. A autonomia relativa da arte moderna e da arte contemporânea indica que, como no caso do filme, muitas vezes há objetivos materiais claros por trás da elaboração de uma obra de arte. No filme, Thomas veste a máscara do diretor de talento nato, com seus métodos controversos e provocativos, encarados como sintomas de sua suposta genialidade artística. No entanto, por trás dessa persona, há seu interesse em satisfazer o mercado, algo que fundamentalmente o trará de volta à esteira do sucesso mas que também, inegavelmente, influencia a estética de seus métodos e de suas obras.

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