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Racismo

Escravidão e racismo

Ideologia é um conjunto de visões de mundo e concepções de realidade, as quais correspondem a certos grupos sociais, classes e segmentos profissionais. Nas relações de produção, esses grupos firmam regras e modelos no interior de instituições (mídias, escola, igreja, sistema jurídico etc), que, por sua vez, serão ferramentas para a instauração dos gostos, modas, gestos e comportamentos.

A ideologia racista é a hierarquização da sociedade de acordo com o fator racial em que grupos étnicos são interpelados inferiores a outro e quem estabelece a superioridade e civilidade é exatamente aqueles que se dizem estar no topo da hierarquia. Nesse pensamento, cada raça está, de modo inato, destinada a cumprir um papel socio-econômico específico na sociedade.  Assim, essa ideologia limita os sujeitos a um objeto construído socialmente de acordo com um conceito biológico de cor da pele, impondo esse objeto como a totalidade de sua identidade.

Α raça branca seria a de “senhores e soldados”, enquanto outras raças seriam destinadas a outros papeis, normalmente, ligados ao trabalho braçal, por exemplo, os negros seriam “a raça de trabalhadores da terra” e o chineses seriam “a raça de operários”. A partir da modernidade, a ideologia racista passa ter o respaldo científico, confirmada por teorias do cientificismo, como o darwinismo social e determinismo racial. De acordo com essas teorias, a discriminação racial é embasada porque, biologicamente, alguns grupos étnicos possuem maiores níveis cognitivos e melhores comportamentos morais e éticos do que outros, o que torna “os outros” menos humanos. O embasamento teórico europeu em relação à reiteração da ideologia de raça foi amplamente apoiada pela elite da sociedade, sendo que filósofos, médicos, padres e pensadores renomados afirmavam a subalternação da comunidade negra.

Dessa forma, essa ideologia racista leva a uma coisificação, desumanização e animalização dos grupos que não estão no topo da pirâmide. Por consequência, eventos e atitudes cruéis passam a ser aceitáveis, genocídios, estupros, açoitamentos, violências das mais diversas passam a ser normalizados pela existência de um ancoramento científico da ideologia racista. 

A ideologia racista é expressa e perpetuada em sua maior magnitude na justificativa da colonização e do sistema escravocrata. O sistema colonial, presente entre os séculos XIV e XIX, foi a maneira encontrada por nações europeias para adquirir uma balança econômica favorável e um acúmulo de metais preciosos. Esses fatores econômicos determinariam força política e militar aos Estados e Reinos europeus, os quais buscavam-na para se tornarem os dominadores no continente europeu. As empresas de traficantes de escravos com sede nas metrópoles e as grandes plantações nas áreas colonizadas com exploração de trabalho escravo são as atividades nas quais se apoiam a economia e a política das metrópoles da época. Então, a ideologia racista foi a ferramenta ideológica utilizada para justificar o ato de colonizar e também o ato de tornar o negro os instrumentos da produção econômica colonial e as mercadorias de exportação mais valiosas. 

A empresa colonial visava o maior lucro possível em detrimento de qualquer direito humano e, para isso, era necesário coisificar e animalizar o negro. Entre colonizador e colonizado, são impostas, por parte do colonizador, relações de dominação e de submissão que objetifica o colonizado, tornando-o escravo. Logo, o sistema escravagista é um dos pilares do sistema colonial, sendo que o alicerce do primeiro é a ideologia racista evocadora da existência natural de uma classe explorada a partir de um conceito biológico. 

Com isso, o racismo é institucionalizado nas colônias e nas metrópoles, resguardando juridicamente a escravidão. Logo, o racismo torna-se parte fundamental e estruturante da atividade econômica vigente.

 O sistema colonial escravocrata contribuiu para a acumulação primitiva de capital e para o desenvolvimento do capitalismo industrial nas metrópoles, servindo de alicerce à sociedade atual. Assim, não há como pensar em racismo de forma descolada do modo de produção atual, haja vista que, apesar de não ter mais aval jurídico, o racismo continua a ser parte estruturante do modelo socio-econômico contemporâneo. 

Resistência e luta da comunidade negra

O negro é e sempre foi ser ativo na história do país e não apenas objeto utilizado como mão-de-obra para as classes dominantes. Existiram diversos formas de resistências negras à escravidão, seja através de quilombos, da luta armada, de fugas, de propagação de cultura, de produção artística, de movimentos políticos, de capoeira, de aquisição de conhecimento. Cada uma possuindo sua importância própria para todo o contexto da resistência da população negra. 

Normalmente, a história contada nas escolas, nas mídias e nos livros didáticos enfocam a luta armada e a luta física, enfatizando sobre as fugas e revoltas de escravos. Com isso, cria-se no imaginário brasileiro de que a resistência à escravidão e às opressões racistas após abolição se dá a partir de uma massa amorfa de escravos e libertos raivosos, como se todos os indivíduos desses movimentos fossem iguais uns aos outros e só pudessem sentir ódio. Ao analisar esse recorte exclusivo, percebe-se que, mesmo ao ser falado de aspectos de força e de orgulho de uma comunidade, a tendência é, novamente, animalizar e coisificar o indivíduo. Não abordam-se sobre as outras resistências que demonstram o caráter da humanidade, da tristeza, da esperança, da individualidade, da diversidade, do poético, do cultural na comunidade negra. Escolhe-se por abordar unica e exclusivamente a massa compacta de escravos e ex-escravos que reage pela violência. 

Tendo em vista isso, vamos entender melhor as sutilezas dessas resistências culturais e de comunidade, que são realizadas no cotidiano e servem para o resgate diário de uma humanidade que é, constantemente, negada às pessoas negras.  

Revoltas e insurreições

Período escravocrata

Durante a escravidão, a forma de resistência mais saliente realizada pela população negra era através dos quilombos. Grupos que prezavam pela convivência baseada no coletivismo entre seus integrantes e na proposta de liberdade. Por todo regime escravagista, diversos quilombos foram formados, alguns com dimensões geográficas destacáveis e outro de menor numero, cada um se desenvolveu organizacionalmente de acordo com a realidade da região em que foi formado.

Embora houve vários fatores que prejudicassem a articulação entre os quilombos (estrutura político-economica fortemente repressora), eles se utilizavam de estratégias militares e políticas para assegurar a sua resistência e permanência organizacional. Há relatos de senhores que pagavam tributos em troca da garantia de que não sofressem ataques dos quilombos em suas propriedades.

Várias revoltas e rebeliões escravas ocorreram em meio ao período escravagista, como por exemplo, a Revolta dos Alfaiates (1798), movimento de mobilização popular antiescravagista, liderado por grandes nomes como Lucas Dantas, Manuel Faustino, Luís Gonzaga e João de Deus, que foi resultado do descontentamento de camadas pobres da população com o governo.

A maioria das rebeliões, assassinatos e suicídios ocorridos nesse período partiram muito mais de tentativas espontâneas de fuga do que interesse de grupos organizados e coesos com finalidade politica. As manifestações negras foram durante muito tempo deslegitimadas e silenciadas através de mecanismo do Estado. Os protesto, insurreições e outras manifestações ocorridos, foram o embrião da luta negra, e tiveram sua relevância na desestruturação do escravagismo assumindo destacável papel histórico.

Vale ressaltar que houve algumas rebeliões que tiveram estratégias planejadas, pontuais, com objetivos bem estruturados e que poderiam ter tomado grande proporção se não fossem as circunstâncias desfavoráveis para a articulação de escravos

 

Primeira republica

Com a primeira republica e o fim da escravidão, teorias raciais penetraram de forma mais intensa dentro do Brasil, de modo a alimentar e dar continuidade as diferenças sociais presentes na sociedade brasileira desde o período colonial. Assim, utilizando um cenário cientificista com teorias como a do Darwinismo Social e de que a mestiçagem era um problema de “saúde pública”, criou-se um cenário em que os ex-escravos eram excluídos sendo deixados a mercê da criminalidade e subempregos. Sendo assim, havia claro interesse das elites e do Estado em excluir o negro do plano político, econômico e social, utilizando-se de teorias raciais e imigração europeia, num processo de marginalização dos negros.

Nesse contexto, os negros assumem papel ativo no cenário político brasileiro, participando das principais revoltas populares, com o objetivo de reivindicar questões socais e econômicas que foram negadas principalmente pós abolição. Dentre os principais conflitos com participação significativa da população negra, temos: Guerra de Canudos, A Revolta da Vacina e A Revolta da Chibata.

No Sertão da Bahia, com a liderança de Antônio Conselheiro, emergiu a Guerra de Canudos. A população de canudos era formada em sua maioria por homens e mulheres negros e ex-escravos (destaque para a maior quantidade de mulheres e sua importância dentro da revolta). Canudos era um claro exemplo do resultado de séculos de exploração escravista e do abandono do Estado. Como uma forma de sobreviver e buscar melhores condições de vida, a população de Canudos se organizou e isso fez com que boatos surgissem de que as pessoas que compunham essa região estavam tramando derrubar o governo republicando. O Estado viu aquela situação como ameaça e fez com que o exército brasileiro destruísse o local. É importante destacar a grande resistência da população do arraial, que mesmo com clara desvantagem frente ao exercito brasileiro, lutou bravamente durante várias investidas até que não houvesse mais forma de resistir.

Em 1904, no Rio de Janeiro, os higienistas e classe dominante culpavam a população pobre (em especial negros) e suas habitações pela proliferação de doenças, que segundo a classe dominante, impedia o ingresso de estrangeiros para o Brasil, manchando a imagem da nação.  Com isso, iniciou-se a demolição de cortiços e houve a criação da lei de vacinação obrigatória contra a varíola. Isso resultou na explosão de protestos que entendiam a vacina como um imposição pois ninguém sabia ao certo como a mesma funcionava, além das brigadas de vacinação que entravam à força nas casas das pessoas (uma espécie de justificativa moral para Revolta). Tudo isso motivou para a insurreição de uma população que já padecia por falta de oportunidades.

Em 1910 a falta de oportunidades e os constantes castigos físicos e morais fizeram os marinheiros do Rio de Janeiro desencadearem a Revolta da Chibata. A maioria da marinha brasileira era composta por negros e pobre que eram castigados a base da chibata (prática herdada do período escravagista). A partir da revolta foi garantido o fim dos castigos físicos na marinha brasileira.

Em síntese, as revoltas protagonizadas por negros na Primeira Republica mostraram a insatisfação constante que boa parte da população vivia pós abolição, que não garantiu uma mudança efetiva da vida para a população livre que se espremia nos centros urbanos e interior em busca de melhores condições de vida e de seus direitos como cidadãos. O discurso que era hegemonia durante esse período era o de que os negros já estava inseridos na sociedade e que questões referentes ao mercado de trabalho eram relacionadas a meritocracia.

Resistência cultural

Período escravocrata 

Desde o primeiro dia em que uma pessoa foi retirada à força de sua família e comunidade no continente africano para ser explorada aqui na América, há resistência cultural. Houve um intenso processo de tentativa de desculturação e desenraizamento da população negra por parte da elite colonial, com proibição de práticas religiosas que não fossem a católica, com a separação de indivíduos vindos da mesma etnia para que a língua não fosse perpetuada entre outras ações com o objetivo comum de apagar a identidade, as relações de pertencimento e afetivas daqueles sujeitos forçados a sobreviver em um território estrangeiro. Em contraponto a esse projeto, os indivíduos reagiram de diversas formas. As religiões de matrizes africanas, apesar de serem proibidas, não deixaram de ser praticadas. Na verdade, para melhor escondê-las do olhar do colonizador, passou-se a ser feito um sincretismo, ou seja, uma mistura das bases religiosas próprias com certos rituais e crenças católicas. Também incorporou-se uma base linguística de origem de diversas regiões e etnias afro-ameríndias ao português imposto de cima. 

Uma forma de resistir ao sistema de exploração e coisificação incluía aprender a ler e a escrever de modo clandestino e também a transmitir esse conhecimento aos demais. Angela Davis, em seu livro “Mulheres, raça e classe”, descreve o caso de uma escrava, em Louisiana, que dava aulas noturnas a outros escravos das onze horas da noite às duas da manhã, de forma que alfabetizou centenas de pessoas.


 

Período pós-abolição

Com a abolição da escravatura, não houve políticas públicas de inserção dos indivíduos libertos na sociedade de forma a garantir que eles de fato saíssem da condição de exploração compulsória. Como o ex-escravo consegue sair, do dia para noite, da fazendo do senhor, sem dinheiro, apenas com a roupa do corpo, e arrumar um emprego que lhe dê um salário suficiente para a sobrevivência, sendo que, aos olhos da sociedade, o único emprego possível para o negro é aquele que pague um total que torna a pessoa, em vez de escrava, serviçal? A ideologia racista não é abolida junto com a escravidão, a comunidade branca continua a se sentir superior e a usar das “provas científicas” criadas nos últimos 400 anos de que cor da pele preta caracteriza depreciação nos aspectos sociais e morais. A cultura negra reconstruída em território brasileiro entre as diversas etnias africanas é vista como desagradável e amaldiçoada. Percebe-se, então, a importância da comunidade negra de ter realizado (e ainda realizar) ações para sua própria auto-estima e orgulho, haja vista que tudo ao redor negava (e ainda nega) esse direito de se sentir humano. 

Existem diversos exemplos desse olhar da comunidade negra para si mesma e, por consequência, da tentativa de resgate do enaltecimento da sua existência. 

Abdias do Nascimento, em 1944, criou um dos maiores espaços de diversidade e de autoafirmação nas artes cênicas do Brasil. Ele fundou a companhia “Teatro Experimental do Negro”, a qual revolucionou a vida de centenas de pretos, pardos, pobres. Recrutou domésticas, analfabetos, operários e desempregados, todos negros, para estudar teatro e montar peças em uma época em que o mais comum eram atores brancos realizarem “blackface” para interpretar pessoas negras, em vez de atores pretos serem contratados, como se o ato de fazer arte fosse, inerentemente, uma característica branca. Abdias não apenas contratava e possibilitava um emprego, historicamente, negado no mundo das artes, mas também alfabetizava o elenco, preparava os atores e incentivava a conscientização deles como cidadãos. Assim, o palco virou espaço para os negros marginalizados terem voz e exercitarem seu talento, tornou-se espaço de resistência. Eles aprendiam sobre as próprias origens, aceitavam as raízes africanas, orgulhavam-se de ser quem eram. Portanto, Abdias trabalhou a autoestima daqueles ex-escravos que quase não tinham deixado de ser ex, mais de 50 anos depois da Lei Áurea.

 

 
Movimentos políticos

Como dito anteriormente, na fase pré-surto cafeeiro, os escravos e ex-escravos, ao participarem de movimentos polítcos, era de forma alienada. Isso quer dizer que não eram os reais agentes políticos do movimento, mas sim eram usados pelas outras classes como força social, uma vez que o número de escravos e ex-escravos na colônia e no império era uma fator importante e podia fazer diferença no momento da luta armada de um movimento. Entretanto, em um dado momento, os escravos e libertos começam a se entender sujeitos políticos do processo de luta contra a escravidão e, por consequência, organizam-se coletivamente para planejar movimentos político-sociais e programas revolucionários.

A maior expressão dessa organização se deu na Insurreição Baiana (Revolta dos alfaiates), que, apesar de ter como data de acontecimento o ano de 1798, por ser o ano em que se colocou em prática as ações e ideais do movimento, anos antes já estava ocorrendo a organização clandestina entre as classes mais subalternas da colônia. Organizavam-se para discutir a condição social, política e econômica em que se encontravam no território, para debater os ideais em que acreditavam e pelos quais lutariam. Embora essas pessoas serem de classe humilde e enfrentarem a barreira linguística com o francês, liam as obras francesas iluministas traduzidas. Logo, houve uma preparação ideológica embasada por pensamentos que afirmavam a liberdade como direito universal do homem e foi criado um programa do movimento, no qual estavam inseridos diretrizes como a emancipação do Brasil do jugo português e o estabelecimento de um regime de igualdade para todos, onde não houvesse mais preconceitos de classe ou raça. Fica evidente que a participação ativa dos escravos foi fundamental para que nessa agenda política estivesse inserida a abolição da escravatura. 

São conhecidos muitos escravos que participaram desse movimento, como Luís Gama, Vicente Mina, Inácio dos Santos, Cosme Damião, José Felix entre muitos outros. Uma das frases dos diversos papéis colocados na cidade expressa de modo essencial o conteúdo abolicionista do movimento : “Homens, o tempo é chegado para a vossa ressurreição, sim para ressuscitareis (sic) do abismo da escravidão, para levantareis (sic) a Sagrada bandeira da Liberdade”

Com isso, fica claro que em um dado momento da história, escravos e libertos começaram a se articular de modo conscientemente político e a se inserirem como forças atuantes do movimento abolicionista. 

Luís Gama, escravo na época da Insurreição Baiana, quando conquista sua liberdade, vira o mais notável líder da ala radical do movimento abolicionista. Ela é chamada de radical, pois diferentemente da outra existente (a moderada), dirigia suas ações e atividades cotidianas mais para os próprios escravos do que para os trâmites jurídicos, organizando-os para que lutassem com as próprias forças contra o cativeiro.

O mito da Democracia Racial

Democracia Racial

O Brasil é caracterizado como um país de grande diversidade cultural, fruto de um processo histórico marcado pela miscigenação de povos indígenas, negros, portugueses, japoneses, chineses, libaneses, italianos e outros. Frente a essa diversidade, surge, no início da década de 1920, a fusão do conceito social de “democracia” com o conceito biológico de “raça” para criar a “democracia racial”. Segundo esse ideal, as relações de raça, no Brasil, seriam harmoniosas e a miscigenação seria a contribuição brasileira à civilização do planeta. Seguindo essa linha de pensamento, como não haveria preconceito de raça no Brasil, o atraso social do negro dever-se-ia exclusivamente à escravidão e não ao racismo. Completa esse argumento o fato de as Constituições brasileiras elaboradas a partir da abolição da escravidão nunca terem diferenciado os cidadãos por raça ou cor, ao contrário do que acontecia nos EUA e na África do Sul, como se isso justificasse a abolição também da ideologia racista no território brasileiro. 

Esse mito é consolidado no imaginário social brasileiro através do discurso, criado por Gilberto Freyre, em “Casa Grande e Senzala”, de que o Brasil é uma democracia racial em que se reina a boa miscigenação. Há uma vasta gama de pensadores e escritores que reiteraram e propagaram o consenso da formação racial do Brasil pela “boa miscigenação” de brancos, índios e negros. A literatura brasileira é uma das primeiras áreas a sustentar que o brasileiro é um povo mestiço e que isso seria o fator da falta de discriminação racial. Exemplo disso são as obras de José de Alencar. Primeiro, “O Guarani” é primeira obra nacional que exalta características pueris e nobres do índio Peri, que se apaixona pela personagem branca Ceci, e de como esta relação é marcada pela inocência e subserviência do índio para com a mulher branca. Segundo, “Iracema” destaca a formação metafórica do Brasil, retratada entre a relação afetiva-amorosa de um colonizador branco e uma indígena, propagando o ideal de que a miscigenação é fruto de amor.  

Fica claro, portanto, que esse mito fundamenta-se na esfera da miscigenação para determinar que existe uma igualdade política, social e econômica no país, desconsiderando assim as limitações estruturais que o negro experimenta na sua vida diária. Essa miscigenação é tratada como boa e é tida como a prova de que brancos, negros e indígenas não adentram em conflitos raciais. Contudo, esquece-se que, na verdade, a miscigenação é fruto de estupros e não do amor entre raças.

 Tal pensamento da democracia racial é um reforço do fetiche da meritocracia ao afirmar que independente da sua cor de pele, você pode conseguir mobilidade social vertical. Vale lembrar que as limitações não se dão pela cor da pele em si, mas pela forma que as relações sociais se deram para estabelecer essa limitação aos negros. Então cabe entender que esse mito impôs obstáculos à luta antirracista no Brasil, como como lutar contra o racismo se, segundo a democracia racial, o racismo não existe? 

Desmistificação​​

Na segunda metade do século XIX, com a proibição do tráfico interatlântico de escravos, foi colocada em prática, no Brasil, uma política governamental de branqueamento da população, com o objetivo de se construir uma nação próspera e moderna. A fim de alcançar tal objetivo, foi traçado um projeto de imigração europeia que se pautavam em teorias racialistas para atestar a inferioridade e o atraso dos negros e justificar a imigraçao europeia branca para o Brasil. Tal fato demonstra que o ideal brasileiro, na mesma época em que se cunha o termo da democracia racial embasada na miscigenação, era o de se multiplicar pessoas brancas no Brasil, demonstrando que, na verdade, o miscigenado e negro representavam o atraso da sociedade. Esse fato demonstra que a democracia racial não passava de um mito. 

Ademais, com o decorrer dos anos após o a abolição da escravatura no Brasil, em 1888, foi se tornando cada vez mais evidente de que não houve incorporação do negro na estrutura econômica e social brasileira devido à permanência da ideologia racista como alicerce estruturante da sociedade. O reflexo disso são os indicadores socioeconômicos, tanto do período após abolição quanto do período contemporâneo, em que a população negra encontra-se com um dos piores indicadores, quando comparado ao grupo branco. A população negra, apesar de representar, atualmente, mais de 50% da população brasileira, ela ocupa, majoritariamente, as classes econômicas mais baixas e as habitações mais periféricas. Ela representa a maior taxa de mortes por assassinato, a maior taxa de violências sofridas pela polícia, a maior taxa de condenação pelos mesmos crimes cometidos por brancos, a maior taxa de analfabetos. Como pensar em democracia racial quando a maioria dos desempregados é negra, o mercado de trabalho é ocupado maximamente por brancos, são os brancos quem têm maior possibilidade de acesso a muitos dos benefícios oferecidos pelo Estado, o acesso ao ensino superior é majoritariamente da população branca e os indicadores de escolaridade são inferiores para a população negra, quando a maioria da população encarcerada é negra ou quando se tem a população negra como alvo da situação de pobreza e marginalização?

Ainda, mesmo entre brancos e negros que possuam o nível de escolaridade, observa-se que há diferença no rendimento médio, tanto de homens quanto de mulheres, em comparação com a população branca. O rendimento médio dos homens negros equivale a 66% daquele auferido por homens brancos com a mesma escolaridade. Isso explica-se pelo fato de que a segregação racial nos papéis relativos às carreiras, posição na ocupação, setor de atividade e nível hierárquico reflete-se na desigualdade salarial entre negros e brancos, mesmo entre aqueles com igual nível de escolaridade. 

O racismo produz e reproduz todas essas diferenças entre grupos étnicos e atua de forma direta nesse quadro. A estigmatização racial é uma ferramenta de vigilância difusa e ciosa da hierarquia e da dominação racial, através da dor, que, como se viu pelos dados estatísticos, nem sempre é corpórea, mas que repercute por todo o indivíduo em um processo de demarcação corporal de uma relação social de desigualdade, resultado da transferência dos processos de dominação/hierarquização. A estigmatização pelo não-dito (injúrias, piadas, trocadilhos, provérbios, ironias etc) marca o corpo sem o uso direto da violência física, sendo um “ato de transformação incorporal” dos corpos. A população negra foi marginalizada no processo de construção econômica do país impedindo com que negros tivessem acesso a instituições políticas (poder legislativo, executiva e judiciário) instituiçoes educativas (escolas e universidades), meios de produção de capital e aos direitos humanos fundamentais. Assim, a ideologia racista se apoderou das instituições. 

 Assim, o mito da democracia racial bloqueou durante anos o debate nacional sobre políticas de ação afirmativa e, paralelamente, o mito da cultura mestiça nacional atrasou os debates sobre a implantação do multiculturalismo educacional brasileiro, uma vez que a miscigenação não eliminou a discriminação, apenas a pluralizou, matizou, conforme a presença ou ausência gradual de características “negras”, principalmente pelo tom da cor da pele, passou-se de um racismo bivalente para um racismo polivalente.

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No campo da cultura brasileira, os estereótipos raciais que a circulam se cristalizam a partir da ampliação dos sentidos das representações literárias. Nos textos canônicos de autores brancos, a figura do negro e sua cultura giram, quase sempre, em torno de questões marginalizadas e/ou pejorativas que tendem a repetir o senso comum. Questões étnico-raciais devem ser incluídas em nossas práticas de leitura crítica e há muitos caminhos válidos para se revisar o passado.

 

Em O Cortiço, de Aluísio Azevedo, a representação da mulher negra nos remete aos estereótipos de raça e de gênero: uma posição passiva de interpretação dos sentidos das personagens negras, comuns à estética Naturalista. Nessa obra, se apresentam duas figuras que indicam tais estereótipos da mulher negra na história da literatura: Rita Baiana, a mulata sensual; e Bertoleza, a negra trabalhadora. As duas trazem as marcas dos abusos moral e físico impostos às afro-brasileiras.

 

Rita Baiana, por exemplo, carrega o estereótipo da mulher sexualizada, vista como objeto sexual do colonizador. Além da sensualidade, em volta dessa mulata, temos diversos elementos culturais que marcam a identidade brasileira, pois essa obra também tem a intenção e a pretensão de divulgar os costumes populares da cultura negra. A sensualidade de Rita é uma construção do colonizador que foi aceita pela história oficial. O poder de sedução do seu corpo é marcado pela independência da mulher livre, que pode ser objeto sexual dos vários homens a sua volta. Sobre essa questão, chega-se à conclusão de que a visão atribuída hoje à mulher afrodescendente traz resquícios dessa construção do colonizador.

 

O deslocamento do lugar confortável das interpretações canônicas nos guia por novos roteiros de interpretação literária. As estratégias pós-coloniais de interpretação do texto literário são respaldadas por uma disposição ideológica de revertermos os sentidos do senso comum, que insiste em negar a presença do preconceito racial nas representações literárias.

Cultura literária

Referências :

Discurso sobre o colonialismo (Aimé Cesaire)

Armadilha da Identidade (Asad Haider)

Sociologia do negro brasileiro (Clóvis Moura)

Rebeliões da Senzala (Clóvis Moura)

https://www.un.org/en/chronicle/article/ideology-racism-misusing-science-justify-racial-discrimination

Mulheres, raça e classe (Angela Davis)

https://www.geledes.org.br/quando-um-heroi-nacional-e-negro-abdias-do-nascimento-e-a-historia-que-nao-aprendemos/

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Ática, 1984.

DUARTE, E. A. Falas do outro: literatura, gênero, etnicidade. Belo Horizonte: Nandyala. 2010

DUARTE, E. A. Literatura e afrodescendência no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf

https://www.anpocs.com/index.php/papers-39-encontro/gt/gt28/9704-casa-grande-e-senzala-e-o-mito-da-democracia-racial/file

https://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1504.pdf

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702006000200012

https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ci/article/view/14136

https://revistas2.uepg.br/index.php/sociais/article/download/7533/4727/

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